Sobre polêmica, ação e reação

por Debora Alves

O mundo do crochê se agitou essa semana com uma fala de Cláudia Raia no programa Saia Justa, no GNT. A fala foi a seguinte: “Há 10 anos, a mulher de 50 estava fazendo crochê achando que a vida dela tinha acabado. Hoje ela está potente, ela está trabalhando”. Foi, de fato, uma fala infeliz, mas eu queria ir um pouco além do “faço crochê e não sou velha” ou “faço crochê e minha vida não acabou”.

 

Vamos aprofundar um pouco essa discussão

Atualmente há muitas questões sendo revistas na sociedade, particularmente em relação à tolerância com o diferente, com o que não necessariamente entendemos. Somos indivíduos em desconstrução, revendo preconceitos e “verdades” que carregamos como absolutas.

Nesse sentido, precisamos lembrar que o crochê (e o tricô, e o bordado etc.) sempre foi associado ao ambiente doméstico, às avós, seja porque era visto apenas como um hobby, seja porque, como arte milenar, tradicionalmente eram as gerações anteriores que ensinavam às novas suas. Há uma grande carga afetiva que envolve o crochê, e o lugar privilegiado do afeto é a nossa casa.

As apresentadoras do programa reproduziram um pré-conceito que tem sido revisitado, mas que ainda tem um longo percurso pela frente. Não acredito que quisessem ofender a mulher que escolhe a arte manual como profissão ou como hobby. Ao longo do programa, elas estavam justamente defendendo o poder de escolha e autonomia da mulher independente da idade.

O que faltou ali foi conhecimento.

O que falta é conhecimento

Sempre me lembro de um texto que li uma vez na revista Caros Amigos em que uma ativista pelos direitos humanos incorria em uma fala que era puro preconceito linguístico. Não vou me lembrar o nome, mas era uma pessoa que enfrentava uma série de preconceitos (racial, de gênero, de orientação sexual), mas que estava, naquele texto, sendo preconceituosa do ponto de vista linguístico. Julgava a capacidade profissional de uma pessoa a partir de como essa pessoa falava, se expressava.

Ela fez isso porque é uma pessoa ruim, que tinha intenção de agredir ou diminuir quem não fala “corretamente”? Não. Ela é uma pessoa que estava defendendo uma pauta e, por ignorância, falta de conhecimento, acabou discriminando outras pessoas.

Ou seja, muitas vezes as pessoas estão defendendo pautas importantes, necessárias para o respeito a grupos que normalmente são discriminados e, sem dar conta, acabam incorrendo em outras discriminações.

O que eu quero dizer com tudo isso?

Naquele momento do programa, a discussão era sobre etarismo, tema pertinente e importante numa sociedade que supervaloriza a juventude e discrimina pessoas a partir de uma certa idade.

Primeiro, não dá para reduzir a discussão toda a uma fala infeliz (que não foi a única naquele dia, aliás).

Segundo, precisamos aproveitar esses momentos para tentar desconstruir a ideia que muitas pessoas têm sobre arte manual. O crochê, tricô, macramê etc. são, sobretudo, arte; são expressão de sentimentos, emoções, inspirações, conceitos.

Recentemente descobriram-se inúmeros benefícios físicos e psicológicos da arte manual. Entre outros efeitos positivos, a arte manual tem sido vista como ferramenta de autoconhecimento e de (re)construção da autoestima, particularmente da mulher.

Tenho trabalhado, há anos, com mulheres cuja única voz é o crochê. Mulheres inseridas em realidades familiares abusivas que têm no crochê a única maneira de sair dessa situação e de garantir o próprio sustento e independência.

Sabe-se também que crochê melhora a coordenação motora, reduz o estresse, potencializa a memória e incentiva a capacidade criativa, o que é fundamental em qualquer idade.

Quem tece frequentemente sente-se mais feliz e tranquilo (fazer crochê faz com que seu corpo libere serotonina).

Outro benefício é que, assim como acontece durante a prática da meditação, ao tecermos, ocorre um fenômeno chamado fluidez: nosso sistema nervoso se concentra tão profundamente, que parece que o tempo e nossos sentimentos desaparecem. Dessa maneira conseguimos a pausa necessária para analisarmos a situação e lidarmos da melhor maneira com os desafios diários.

São todos benefícios que as apresentadoras ignoraram na hora do programa, exatamente pela falta do conhecimento de causa.

Acredito que o momento seja se exaltarmos essas qualidades, informarmos para quem ainda não sabe os inúmeros benefícios dessa arte milenar.

Falta de empatia

Houve falta de cuidado e empatia? Sim! Não pensaram, por exemplo, nas mulheres que teceram as roupas que Sabrina Sato vestiu no carnaval de 2018 ou o casaco que Astrid Fontenelle usou no mesmo programa dias atrás, ou o vestido que Cláudia Raia usou em festa no Beach Park (para citar apenas uma ocasião em que as apresentadoras usaram manualidades).

Criar conteúdos que agridam as apresentadoras, desqualifiquem suas falas, não vão trazer benefício algum (a não ser eventualmente “likes” – polêmicas engajam). Se você quer mudar a mentalidade das pessoas e evitar que novas falas infelizes como aquela sejam ditas, compartilhe a delícia, a gostosura de trabalhar com o que se ama, valorize seu próprio trabalho, contribua para a profissionalização da atividade!

 

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20 comentários em “Sobre polêmica, ação e reação”

  1. De todas as postagens que li sobre o comentário da Cláudia Raia no Programa Saia Justa sem dúvida este texto foi o mais sensato e justo. A proposta de demonstrar os benefícios e a importância das manualidades é a melhor resposta que podemos dar às pessoas que por desconhecimento tecem comentários aleatórios.

  2. Adriana Patrícia Passini

    Querida Débora, como sempre muito sensata e sábia em seus comentários. Obrigada por estar sempre atenta e nos presenteando com temas tão importantes.

  3. Patricia Papacidero Braga

    Belas palavras Debora, vc é tao linda por fora por dentro eu acho tao rico tao lindo pessoas que veem as coisas com outros olhos e evitam que tais coisas piorem, Saiba que sou super fã sua alem de comadre kkk Vc mostra cada vez mais seu lado chique educado e refinado alem de nossas peças que nos embelezam, a Educaçao e inteligencia sao as peças mais chiques que podemos mostrar. Parabens sua linda. Me inspiro muito em vc❤️

  4. Débora, você disse tudo. Parabéns por expor o seu ponto de vista, isso é muito importante para todas nós que acreditamos em nossas artes manuais.
    Gratidão!
    Um beijo Lidy Resende

  5. Parabéns! Você arrasou! Descrição sábia e refinada do acontecimento. Nada como colocar em palavras nossa opinião. Amo manualidades e me desafio a cada peça que faço. Viva o crochê

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